Wednesday, December 05, 2007

Era suposto começar a escrever qualquer coisa mas a página em branco tornara-se assustadora. A possibilidade não lhe metia medo, roia-lhe antes as unhas a cada nova linha. Pegava na caneta, escrevia uma frase e riscava. Voltava a escrever. E voltava a riscar. Atabalhoadamente, a raiva de não conseguir juntar um conjunto de palavras que sentisse como suas ou pelo menos que dissessem alguma coisa "de jeito". A posição na cadeira era incómoda, os papéis amarfalhados no chão apinhavam-se, o gesto de passar a mão pelo cabelo repetia-se, entediante. Aos poucos os pensamentos vagueavam para a rua, não importava que rua, apenas uma rua. Na placa o nome. Não conseguia ler. Imaginava antes uma mansão do século passado plantada por entre as arcadas de vegetação que a envolviam. As paredes gastas, abrigo de ervas em gesto de abandono. Uma piscina vazia. Paralelamente, uma estrada. Carros de um lado para o outro deixando para trás a sua sonoridade baça. Um sonho. Uma diva de filmes quiça de uma época distante, quando cinema era apenas um recreio de crianças, onde tudo era por amor à película. Alguém vocifera sorrateiramente: é aqui. O telefone de orelhão antigo toca como uma campainha. Uma voz ouve-se deste lado: "não mora ninguém aqui. não estou aqui. estou aí." Do outro lado alguém procura alguém. Ouvem-se passos. É uma mulher. De saltos altos parece percorrer a casa, devagar. Por instantes pára. Retoma o passo que se torna cada vez mais próximo. Assustadoramente mais próximo. Ao fundo do salão a grafonola começa a tocar, ouve-se apenas estática. De repente as luzes acendem e o salão está cheio, de homens e mulheres elegantemente vestidos. Todos dançam. Uma voz: "a estrela que foi perdeu-se por entre publicistas arrogantes e páginas de jornal insidiosas..." No entanto dança, imperturbável. Como se nuns meros passos de dança se definisse toda a sua garra e determinação. Ria-se desinteressadamente. Sorria quando lhe elogiavam o aspecto de petite gamine française. Fica tudo às escuras. O reflexo da lua atravessa o salão com toda a sua intensidade. Não há ninguém. Ouve-se apenas a estática da grafonola e uma voz: "Mr. De Mille I'm ready for my close up..."

Vesper E

2 Comments:

Blogger João Roque said...

Enquanto lia o teu texto, com interesse crescente, acredita-me que iam passando meteóricamente pelos meus olhos algumas cenas de filmes marcantes, pelo menos para mim; vou dar-te um exemplo, a um dado ponto "vi" o portão da mansão do "Citzan Kane", noutros algumas cenas dos filmes a p.b de Hitchcock e obrigatòriamente apareceu-ma a Glória S. no "Crepúsculo dos Deuses" com que terminas o texto.
Belìssimo exercício de escrita. Para quando, algo mais editado?
Beijoquitas.

05 December, 2007 18:51  
Blogger Catwoman said...

Acrescentaria só mais um filme, ou melhor, um livro, à lista do Pinguim : O Grande Gatsby.
O teu texto fez-me lembrar a descrição da 1ª festa em casa de Gatsby, as luzes, o corropio de gente, o movimento das lantejoulas ao som do charleston,o champanhe a correr e Gatsby na varanda, de braços estendidos em jeito de abraço para o outro lado do rio...para Daisy.

Gostei muito :)

After eight kisses

06 December, 2007 04:38  

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