portrait...1 or so...

"um retrato escondido num qualquer baú, aquele que a avó guardara no sotão. ao vasculhar nas recordações, mergulhou na sua intima solidão. não estava só. mas o retrato relembrava-lhe a tristeza que nunca abandonara o seu olhar... ficava horas a ler palavras escritas, tentando fazer recuar a corda do tempo, fitava cada linha como se a projectasse em voz alta... queria ouvir novamente a sua voz. não podia. os borrões de cada carta ficaram marcados no papel como os pingos de chuva no cheiro da terra...passava as mãos pelo cabelo repetidamente. um tique constante. sinónimo de calma. segurança. talvez. apenas conforto. como se ao mesmo tempo os pensamentos viajassem com a mão. ou apenas fosse mimo. um toque. que relembrava outro ausente... pegou numa caixa de cartão. lá dentro pedaços de papel: uns enrolados, outros meios rasgados... marcas de momentos...do seu rosto...

com a passagem dos anos ficara assim. tudo era vago, distante. o último recurso. a paragem feita quando não se avista outra ao longe... sentia-se por partes ou em partes, como os papeis... um dia seguia outro, sem grande novidade ou "excitement"... de vens em quando dava-lhe para isso: palavras inglesas...

acendeu um cigarro. por entre as nuances que o fumo desenhava na luz que lhe entrava pelo quarto viu o retrato. o seu reflexo. esfumaçado, diluido, distante. um passáro pusara no parapeito. um pardal, parecia. ficou por ali saltitando por instantes. a única presença viva...

pegou nos antigos vinis de Jazz. escolheu Nina Simone, pela voz grave. deixou-se embalar... fechou os olhos. sonhou.

a porta do quarto fechou-se. o passaro levantou voo. ficou ali em silêncio. a única voz presente na sua existência.

tudo o resto distante. a sua presença preterida, os seus olhos ignorados, o seu coração despedido, a sua voz...perdida num dia qualquer... num retrato..."

...E