Saturday, July 14, 2007

pedaços de noz...


"Pintava. Cada quadro seu reflectia a beleza de uma harmoniosa ligação de pinceladas. Era raro. Os quadros estavam guardados, nunca expusera. Deixara a sua casa ser a galeria de arte. Convidava amigos e os amigos outros amigos e a exposição era um sucesso. Por exposição entenda-se a partilha de cores, de esboços, de visão ou apenas de 5 minutos em frente a um quadro.

Naquele dia pensava que seria igual a tantos outros... Trocaram-lhe as voltas. O cansaço tinha vindo a instalar-se. Ficava em silêncio. Esperava a qualquer segundo que um ruido lhe interrompesse a afonia. Os únicos ruídos que se mantinham eram os seus e ficavam guardados, como o baú que encontrara no sotão da avó. O único momento em que o seu silêncio se alinhava era em frente a uma tela. De cada vez que dava uma pincelada a ausência de som ganhava outra forma. As cores falavam como se cada uma quisesse contar a história da sua vida.
Por entre pincéis e tintas ficou. Já não conhecia a sua roupa sem pingos de tinta ou a suas mãos sem cheiro a terbentina...
Fechou a porta de casa. Precisava de apanhar ar. Foi até ao sotão. Ali guardava todos os seus quadros. Fazia companhia ao báu. Memórias aparentadas. Um espaço em que o tempo ia acumulando rostos, esboços, vozes, silêncios... Aquele sotão era o seu cantinho, o seu espaço de encontro com as recordações partilhadas.

Morava junto ao rio no meio de uma zona florestal. Quisera ficar junto da casa dos avós. Tinha o seu espaço. A outra casa era o recolhimento. Sobretudo o sotão. Por ser mais acolhedor.
Fez o curto caminho junto à margem. Adorava andar ao som do fluir da água. Melodia de uma passada incerta. Há dias que não conseguia pintar um risco sequer. Um turbilhão revoltara o seu interior. Oscilava entre raiva, ódio, tristeza, desilusão. O quadro que tentara acabar, já não podia ser terminado. Teria de ficar assim... Tal como as suas mãos, por terminar.
Estava quase a chegar à casa de família. Meteu a mão ao bolso das calças já gastas e rotas para tirar as chaves. No movimento de cabeça entre o bolso e a fachada da casa, tudo ruiu. Restava apenas o resto do que parecia ter sido um incêndio. A estrutura da casa aguentava-se de pé, mas tudo se evaporara.

Deixou-se cair. Ficou no chão. As memórias que ali guardara desapareceram. De um momento para o outro foram consumidas por um fogo atroz. As pinceladas, as cores, as palavras, as fotografias...tudo...foi roubado por uma chama mais forte.
No rosto espelhava a tristeza que lhe invadira o coração. Restava a sua memória traiçoeira do olhar de amigos, da reacção aos seus quadros, nada mais...
Tudo o que fazia parte de si, consumido...
As mãos que sempre conhecera com terbentina,
a roupa manchada de tinta,
o silêncio tranposto em ruído em cada pincelada...tudo...perdido...

Quem era? tudo parecia distante, como as memórias perdidas no meio das chamas...
como se conhecia, fazia parte daquelas recordações, um fragmento por entre outro e outro, espalhados pelo sotão...
Tabula Rasa...
All that she was and felt like hers,
by the wake of dawn,
all gone...

Fechou os olhos para pelos menos durante 5 minutos tentar guardar o máximo de memórias possível. As outras ficariam perdidas para sempre... como as palavras...
Um começar de novo... tentativa de se encontrar... quem era, perdido também por entre as chamas? talvez...

pequenos pedaços, fragmentos, aos poucos um Eu.

tabula rasa..."

Vesper E


this text is dedicated to a very dear friend, Pinguim. May it be part of a memory...

6 Comments:

Blogger João Roque said...

Cris, minha boa amiga
sucedeu algo incrível, acredita.
Um bocado estranho pela tua falta de notícias, quer pessoais, quer em comentários e devido à ausência de um novo post teu, vim agora ao teu blog, para te deixar um novo comentário no post anterior a este.
fiquei satisfeito de ver novo post e comecei a ler.
Conforme ia chegando ao fim, comecei a associar o texto à minha situação, e só então, acredita, vi a tua dedicatória.
Fiquei comovido e estou muito agradecido por esta prova de uma boa Amizade.
Um beijo grande, além das habituais beijoquitas.
Bom fim de semana.

14 July, 2007 08:03  
Blogger luiscutileiro said...

entre perdas e ganhos... um belo texto.

15 July, 2007 03:29  
Blogger lampejo said...

No meio das cinzas dos perdidos bens matérias, guardamos as preciosas memórias para a eternidade...
Beijinhos.

15 July, 2007 07:19  
Blogger Miss Vesper said...

querido amigo pinguim, desde já um muito obrigada, por tudo mesmo e especialmente por este teu doce comentário. Não pude deixar de escrever um texto sobre o sucedido... em mim fez sobressair a sensação de perda e como nos abala por dentro. ainda bem que gostaste. o meu gesto, como aliás acampanham as minhas palavras, são sempre do fundo do coração.

um beijo grande e muitas beijokitas;)

15 July, 2007 21:40  
Blogger Miss Vesper said...

Lc ora muito gosto em rever-te;)

obrigada pelo comentário.
nem sempre as palavras me saiem da melhor forma, mas enfim, vou tentando;)

beijinhos

15 July, 2007 21:41  
Blogger Miss Vesper said...

lampejo tens toda a razão, as memórias para toda a eternidade...
as minhas estão bem guardadas num sincopado bater cardiaco, que não se esconde, antes se revela.

beijinhos

15 July, 2007 21:42  

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