Tuesday, August 28, 2007

Pequenas coisas

"Olhava para a Lua. Para a forma como as nuvens nocturnas a trespassavam. Via a Lua como um espelho, seu, igualmente trespassado. As linhas do seu rosto pareciam cada vez mais carregadas. Não pela quantidade de cigarros que fumava. Também ajudava, é verdade, mas devido a circunstâncias. À sua volta tudo lhe pesava, em especial os erros cometidos. Não conseguia esquecer as páginas dactilografadas que se perderam, o prazo falhado, os continuos atrasos, a pressão de um trabalho para o qual não tinha capacidade. No momento, não, não tinha. Mesmo que quisesse dar um passo por cima do carvão ainda aceso, os demais, relembravam-lhe que tinhas os pés desnudados... Uma voz daqui, outra de acolá, outra e mais outra e mais outra, um uníssono de sentido pragmático. Sentido esse que lhe escapava por completo. Pelo menos por agora. Não queria ler só por ler. As palavras, queria degustá-las, saborear cada metáfora, cada entre-linha, não queria fazer parte dos que lêem a correr, em "intervalos". Por vezes sentia-se parte de um gigantesco "tempo de recreio" em que os miúdos correm todos em fila indiana para o carro dos gelados, todos à procura do mesmo, enquanto ficava ali, a brincar na caixa de areia. Deixava-a escorrer por entre os dedos, como uma ampulheta. Contava-lhe o tempo. Tempo que não esperava controlar, mas apenas assistir aos seus movimentos, como a areia nas suas mãos. A sensação de toque dava-lhe o sossego para além da correria alheia. Naquela caixinha de areia, tinha todo o tempo do mundo e nela o tempo, apenas a acompanhava, suavemente com o seu toque, sem exigências, sem julgamentos, sem preguiças. Naquela caixinha o tempo andava de mãos dadas com o silêncio. O seu. E por instantes, conseguia ver nos pequenos grãos de areia, o reflexo da brisa que os atravessava individualmente. Gostava da sensação. Fora do mundo, dentro de outro. O resto eram apenas filas infindáveis do mesmo. Era diferente. Recusava-se a andar a galope... Queria apenas ver as pequenas coisas...
Sentou-se no jardim, ainda com a luz da Lua sobre a sua face carregada, e voltou a tocar a areia..."


Vesper E

1 Comments:

Blogger João Roque said...

Muito belo este texto, mas algo triste.
Não é necessário andar sempre a seguir os "recreios" das multidões, assim como é imprescíndivel, de vez em quando deixar de brincar com a areia...sempre...sempre...
Beijoquitas.

14 September, 2007 06:57  

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